Justiça suspende lei e decreto que destinam 5% das vagas para travestis e trans em empresas com incentivos fiscais no RN
Decisão ocorreu em função de duas ações movidas por federações do estado. Desembargador Cláudio Santos entendeu que cabe à União legislar sobre direito de trabalho. Governadoria do Rio Grande do Norte
Sérgio Henrique Santos/Inter TV Cabugi/ARQUIVO
A Justiça do Rio Grande do Norte suspendeu nesta quarta-feira (30) a lei e o decreto estadual, de 2023 e 2024, que garantem a reserva de pelo menos 5% das vagas de emprego para travestis e pessoas trans em empresas beneficiadas por incentivos fiscais estaduais.
A decisão do Pleno do Tribunal de Justiça do RN acompanhou o voto do relator, desembargador Cláudio Santos, e vale até o julgamento final de duas ações diretas de inconstitucionalidade referentes ao tema.
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A lei estadual que determina a cota de vagas para pessoas trans e travestis foi sancionada pelo governo do Estado em novembro do ano passado, passando a valer de imediato.
As ações na Justiça foram movidas por:
Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Norte (Fiern);
Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado do Rio Grande do Norte (Fecomércio/RN);
Federação de Agricultura, Pecuária e Pesca do Rio Grande do Norte (Faern);
Federação das Empresas de Transporte de Passageiros do Nordeste.
Nas ações, as federações alegaram que “a aplicação da lei poderá resultar em prejuízos significativos para as micro e pequenas empresas, que teriam que readaptar seus quadros de funcionários, potencialmente resultando em demissões e instabilidade econômica”.
Em nota, a Secretaria de Estado das Mulheres, da Juventude, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (SEMJIDH) informou que recebeu a decisão com “profunda insatisfação e indignação” (veja nota completa mais abaixo).
Decisão
O entendimento da Corte de Justiça do RN para a decisão foi de que os dispositivos da lei e do decreto ferem os princípios da legalidade, livre iniciativa e anterioridade tributária. Além disso, entendeu que não há competência privativa da União para legislar acerca de direito do trabalho, entre outros pontos.
Um dos aspectos destacados pelo relator foi que o Estado interfere nas normas que regem as contratações pelo Poder Público ao impor condições específicas para manutenção de contratos e convênios firmados entre empresas privadas e o próprio Estado como exigência de reserva de vagas de empregos.
O relator a Constituição Federal para afirmar ser competência exclusiva e privativa da União legislar a respeito de direito do trabalho, de maneira a assegurar a uniformidade das normas trabalhistas no país.
“A mesma lei estadual também incorre em inconstitucionalidade ao legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, matéria igualmente reservada à competência privativa da União, conforme o art. 22, inciso XXVII, da Constituição Federal”, destacou o desembargador Claudio Santos.
O entendimento do relator, seguido pela Corte de Justiça, observa que a lei infringe o princípio da livre iniciativa, também na Constituição Federal, pois impõe ao empresariado obrigação que interfere na liberdade de gestão e administração de seus recursos humanos.
“A inclusão de minorias deve ser buscada por meio de medidas afirmativas justas, equilibradas e bem fundamentadas, e não por meio de imposições legais arbitrárias que podem gerar efeitos negativos tanto para as empresas quanto para os trabalhadores”, disse o desembargador.
O desembargador citou ainda que a lei, ao impor a reserva obrigatória de vagas como condição para a manutenção de benefícios fiscais, “introduz uma nova obrigação que, se descumprida, resulta na perda dos benefícios fiscais, o que representa, em essência, uma majoração indireta da carga tributária”.
Entidades e Governo
As federações que entraram com a ação sustentaram que a alteração das condições para manutenção dos benefícios fiscais consiste em majoração indireta de tributos. Defenderam ainda que, embora a inclusão social seja importante, deve ser promovida através de políticas públicas, “e não pela transferência de responsabilidades ao setor privado”.
Na ação, o Governo do Estado pontuou que a lei tem o objetivo de garantir a dignidade da pessoa humana e afastar os efeitos da discriminação no mercado de trabalho, que dificultam o acesso a vagas de emprego por travestis e trans.
O governo acrescentou ainda que a política de preferência de contração dessas pessoas ganha destaque nas instituições públicas, “não sendo nenhuma surpresa que a mesma ação afirmativa chegasse, também ao setor privado, especialmente, àquele que recebe incentivos fiscais para a prestação de sua atividade econômica”.
A defesa do governo na ação lembrou também que há 33 anos existe política semelhante de reserva de vaga no segmento privado para público formado por pessoas com deficiência.
Para o Poder Executivo Estadual, a medida foi concebida para incentivar as empresas que queiram captar recursos públicos a fomentar a oferta de vagas ao público em questão, marginalizado historicamente no mercado de trabalho.
O que diz a SEMJIDH
O g1 procurou a SEMJIDH, que respondeu com a seguinte nota, assinada pela Coordenadoria da Diversidade Sexual e Gênero, pelo Conselho de Políticas Públicas LGBTs do Rio Grande do Norte e pelo Comitê de Enfrentamento à LGBTfobia e suas respectivas instituições:
“Nós, que atuamos no movimento LGBT organizado deste estado em parceria com o poder público, manifestamos nossa perplexidade diante da decisão do Desembargador Cláudio Santos, do TJRN. É com profunda insatisfação e indignação que recebemos a notícia da suspensão do decreto que garantia a reserva de 5% das vagas de emprego para a população trans e travesti em empresas que recebem incentivos fiscais do governo do estado do Rio Grande do Norte.
Essa população já enfrenta a negação de vários direitos desde o início de suas transições, frequentemente vítimas de violência e violação dentro do próprio lar, incluindo agressões físicas e psicológicas, além de expulsões. Ao se afastarem do ambiente familiar, muitas são forçadas a viver à margem da sociedade, expostas ao mundo da prostituição e da dependência química, muitas vezes sem acesso à educação ou oportunidades de lazer. Sobrevivem em um contexto de extrema vulnerabilidade, onde a expectativa de vida é alarmantemente baixa, semelhante à de jovens em regiões de conflito na África.
A busca por espaços que acolham e respeitem essas pessoas é um sonho antigo e uma luta que vem sendo travada há anos. Com a organização e mobilização, essa população conseguiu avanços significativos, como o provimento específico para a retificação de nome e gênero no estado (Lei 73/2018) e a implementação de políticas públicas em Natal, incluindo o uso do nome social (Lei 5992/2009) e o programa Transcidadania (Lei 11.132/2022).
Nos últimos anos, também conseguimos estabelecer conselhos e comitês dedicados a ouvir e atender as demandas da população LGBTI, criando condições para que travestis e pessoas trans possam acessar o mercado de trabalho, como já ocorre no Rio Grande do Sul.
O governo tem investido em capacitação, oferecendo cursos profissionalizantes a bolsistas do programa Transcidadania. É importante destacar que a lei não obriga as empresas a contratar pessoas trans, mas busca garantir que elas tenham a oportunidade de concorrer a vagas de emprego, um direito que ainda é negado em muitos casos.
O mesmo relator que suspendeu a Lei 11.587/2023 e o Decreto 33.738/24 também se posicionou contra a proibição da LGBTfobia em estabelecimentos e contra a gratuidade nas retificações de gênero e nome. É necessário ressaltar que a reserva de vagas também existe para pessoas com deficiência, mas a inclusão dessa população no mercado de trabalho ainda é um desafio.
Essa exclusão nos coloca em uma posição vulnerável, e a negação de um direito constitucional de emprego e renda, por meio do decreto, representa uma barreira ao futuro de muitos que não encontram acolhimento nem mesmo em suas próprias casas. A luta por educação inclusiva e o direito de serem contratadas em ambientes respeitosos é urgente.
Para concluir, lembramos da Professora Pós-Doutora Leilane Assunção, que faleceu em 2018 sem realizar o sonho de retificar seu nome e sem conseguir um emprego, apesar de sua formação acadêmica. Sua frase ressoa profundamente neste momento: ‘Quando você nasce trans, a militância não é uma escolha, é um imperativo ético; ou você luta, ou você morre, e mesmo lutando, você acaba morrendo'”.
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